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Artigo: Na cadeira do diretor #1 – O cinema surreal de David Lynch

Apresentando David Lynch

Reprodução

David Lynch é um cineasta, músico, escritor, quadrinista, pintor e escultor estadunidense, que hoje conta 76 anos. Lynch é um artista de muitas facetas, alcançando vários públicos, tanto com seus filmes e séries, quanto com seus curtas, livros ou obras plásticas. Formado na Pennsylvania Academy of Fine Arts, na Filadélfia, por volta de 1966-67, o diretor nunca deixou de trabalhar com pintura, e relata ter adorado o tempo em que estudou na faculdade. Os estudos acadêmicos de Lynch nos dão pistas sobre a inspiração do diretor ao construir um estilo próprio em seu universo cinematográfico. 

Que gênero é esse?

Inspirações cinematográficas que vêm de outras manifestações artísticas que não o próprio cinema não são novidade dentro do próprio gênero. Luis Buñuel, um diretor de grande referência no cinema surrealista, trabalhou juntamente com o pintor e artista Salvador Dali em filmes como Um Cão Andaluz, onde cenas oníricas demonstram o modo de produção artístico surrealista, na época em voga, para subverter os valores do romantismo e realismo. A exemplo dos grandes nomes do gênero, podemos perceber no cinema Lynchiano como o autor trabalha com profunda inspiração surrealista.

Um Cão Andaluz/reprodução

Para início de análise, o cinema de Lynch é subversivo. E isso se dá a nível linguístico e semiótico, uma vez que a língua dos sonhos e do inconsciente é a linguagem simbólica, tão buscada no gênero surrealista. O que se comunica diariamente com palavras que remetem a objetos concretos de uma realidade compartilhada, não é comunicada na linguagem simbólica. Esta é uma linguagem compartilhada a nível ontológico; habita na mente inconsciente de todos enquanto espécie. Já acordou de um sonho e se perguntou o que significava esse sonho, sem obter respostas? Isso se dá porque na vida em vigília já não podemos compreender as mensagens de nosso inconsciente. Associações livres de imagens, sons e formas são a matéria prima para a construção de nossos sonhos, que nos transmitem mensagens que, mesmo sem nosso entendimento, comunicam algo profundo sobre nossa natureza.

Sonho causado pelo voo de uma abelha ao redor de uma romã

um segundo antes de acordar (Salvador Dali)/reprodução

O mesmo processo de construção onírica opera na produção artística surrealista. As mensagens que aqui aparecem, não são vazias de sentido, talvez apenas vagas de uma lógica operante em nossa vida consciente e por esse motivo são de difícil compreensão. Mas isso não significa que não tenham sentido. Você diria que uma frase dita em um idioma que não domina não significa nada apenas porque não conhece sua tradução? A linguagem onírica e simbólica dos filmes surrealistas são dotadas de sentido simbólico, que podem ser desvelados, não diante de uma análise lógica, mas seguindo uma tendência artística que foi iniciada justamente para quebrar a lógica previsível e esvaziante de sentido, típicos do gênero romance e típicas também da vida moderna e tecnológica guiada sob lógica capitalista de produção e reprodução. 

Comentários sobre a obra 

Nos filmes de David Lynch, vemos o esforço do diretor para dar formas à angústias modernas tão comuns ao nosso dia a dia, mas de forma velada por uma linguagem captada à nível não-lógico. E a necessidade de se alcançar esse nível de significação é que pode fazer com que um filme de Lynch se torne um filme diferente para cada telespectador. O diretor parece nos convidar para uma apreciação individual e única de sua obra, uma obra onde o mais importante sempre é sua própria interpretação ou significação. Suas obras parecem ser feitas de apreciador para apreciador, pois a não linearidade e a irrelevância da causalidade nos enredos nos dão uma impressão de um caos que se desenrola sem um mágico por detrás das cortinas, ou seja, não temos uma lição de moral entregue mastigada ao final, e sim o desafio de dar algum sentido ao que foi assistido segundo sua própria subjetividade. 

Eraserhead/reprodução

O diretor parece sempre se preocupar em oferecer experiências inéditas de universos sensoriais, levando o telespectador a sentir sensações das mais extremas, como medo, fantasias, desorientação, vertigem, etc. Ou seja, o valor da experiência é maior que o do entendimento. As tramas lógicas, como as relações entre os personagens, viram apenas pano de fundo para sucessões de acontecimentos inesperados e que obedecem leis desconhecidas de nossa realidade compartilhada. Algumas associações são mais perceptíveis e fáceis de serem interpretadas, mas várias outras permanecem sem uma explicação final ou geral. Aqui, o diretor lança mão de uma enorme variedade de recursos para representar sua linguagem simbólica/surrealista, como sobreposição de imagens, metamorfoses físicas de personagens, planos coloridos em contraste com cenários sem cor, diálogos reproduzidos de trás pra frente, etc. Qualquer cena de David Lynch é digna de aparecer em um de seus sonhos nesta noite. 

Twin Peaks/reprodução

Talvez sua obra mais conhecida seja o seriado cult dos anos 80 Twin Peaks, cujo enredo trata sobre a investigação do agente do FBI Dale Cooper sobre a morte da jovem Laura Palmer. A série investigativa é repleta de personagens caricatos e todos eles são suspeitos do assassinato. Entretanto, Lynch consegue fazer da cidade de Twin Peaks um organismo vivo e com personalidade, uma vez que acontecimentos e personagens sem explicações tem como palco a pequena cidade. Uma das personagens mais memoráveis da série é a Log Lady (Senhora do Tronco, em tradução livre) que carrega nos braços um pedaço de tronco profético e revelador segredos; essa personagem já foi retratada e referenciada em várias outras mídias e em todas elas, o tronco tem uma mensagem para você.

Lynch tambem conta com temas mais críticos e pertinentes em seus filmes, e nessa ótica dramática temos o filme O Homem Elefante que conta a história (baseada na vida real) de John Merrick, um homem que tem o rosto desfigurado por conta de uma deficiência. John é exposto como uma aberração num espetáculo de horrores e seu gerente o trata como um deficiente intelectual, além de manter com John uma relação de propriedade e exploração. A trama nos leva a reflexões existenciais e a um foco precoce à problemática da desvalorização e esvaziamento da pessoa deficiente numa sociedade movida pela produção. O filme é um sucesso de crítica e recebeu oito indicações ao Oscar, como  Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Ator.

O Homem Elefante/ reprodução

As obras de David Lynch podem parecer muito estranhas para aqueles acostumados com o cinema convencional e que não se preocupam em produzir significado próprio para uma experiência cultural. Entretanto, seu estilo é um veículo moderno de entretenimento, quebrando convenções e estilos tradicionais de narrativa, capaz inclusive de tocar temas sensíveis de uma forma muito particular e profunda, temas esses que muitas vezes permanecem velados por tabus sociais. Ao assistir algo do diretor, tenha em mente que está iniciando uma jornada a um destino desconhecido e aberto, que pede por interpretações e significações particulares. Um dos maiores artistas surrealistas contemporâneos, David Lynch é uma pérola moderna do cinema, um objeto de estudo para os amantes das ciências psicológicas, uma viagem alucinante e uma mente enigmática para a apreciação de poucos, tudo ao mesmo tempo!

Hora de (apenas uma) recomendação!

Recomendo aos interessados o seriado já citado Twin Peaks (mais especificamente sua terceira temporada). O seriado tem três temporadas e um longa-metragem. Iniciada nos anos 80, a terceira temporada da série chegou apenas em 2017, hiato este já previsto pelo diretor na própria trama da série. Apesar dos elementos surrealistas, a série tem uma fórmula convencional, oferecendo uma primeira experiência não muito impactante pela peculiaridade do gênero e fácil de ser apreciada. Oferece momentos de drama e humor com seus personagens carismáticos e enigmáticos aos olhos do agente Cooper ao investigar o misterioso assassinato de Laura Palmer. Cada um tem seu interesse particular na trama e trazem dilemas éticos particulares. A pegada surrealista é servida aos poucos, contribuindo muito para cenas de suspense e de conflitos internos e inconscientes. Particularmente, comecei a assistir pela terceira temporada, que está disponível na Netflix (justamente pela praticidade). Isso dificultou a compreensão de quais personagens eram aqueles e quais são suas relações, mas não impediu de ter uma experiência divertida e interessante, porque uma nova jornada se inicia para Dale Cooper a partir dessa temporada e conhecemos a fase mais madura e mais bem produzida do diretor. Achei tão interessante a proposta que depois procurei assistir as primeiras temporadas, me levando a conhecer um Lynch ainda experimental no estilo, mas ainda assim com alto nível de qualidade. O episódio 8 da terceira temporada é um episódio diferente de tudo que já vi, com cenas inesquecíveis e primorosamente produzidas. Um espetáculo à parte.

Twin Peaks/reprodução

Sobre Emerson Dutra

Um psicólogo que tem o mundo nerd como seu guarda roupa para atravessar para uma Nárnia que é mais divertida, interessante e justa que nossa realidade compartilhada.

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