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Nesta semana, estão sendo completados 11 anos desde o episódio final de uma das maiores séries de todos os tempos, Lost! Com um dos finais mais polêmicos do universo das séries, Lost divide sua base de fãs entre aqueles que protegem e defendem a obra com unhas e dentes (meu caso) e aqueles que abertamente confessam sua decepção pelo tão aguardado final. Gostando ou não, é consenso que o desfecho da trama é confuso, e, em até certo ponto, isso é natural, tendo em vista tantos mistérios e tantos caminhos que a trama trilhou até seu ponto final.
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Após o final de Lost, houveram séries que se propunham a ocupar o vácuo deixado por ela, mas é difícil dizer que qualquer uma delas tenha tido sucesso na tarefa. Inspirados pelos infinitos mistérios vindos das mentes de J. J. Abrams e Damon Lindelof, Lost inaugurou um estilo, difícil de se definir, de tramas que giram em torno de mistérios aparentemente sobrenaturais, como o desaparecimento de pessoas, pessoas com poderes sobrenaturais, instituições misteriosas e perigosas. Alguns dos exemplos das séries que vieram no vácuo com esses temas em comum são Heroes, Jericho, Alcatraz, “V”, The 100… Podemos dizer que após Lost, o gênero de ficção científica ganhou novos ares e passou a ser grande referência para outros criadores e diretores. É claro que a mistura de temáticas, grande número de complexos mistérios e uma decaída na qualidade dos roteiros causaram um dos finais mais polêmicos da história. Teria Lost pecado pelo excesso? Fica a reflexão, embora este não seja o tema central deste artigo.
Na tentativa de definir a fórmula de sucesso de Lost, podemos pensar em algumas características da série que foram as responsáveis por nos prender de forma tão intensa durante as seis temporadas. Essas características continuam sendo modernas e algumas podemos inclusive encontrar nas obras mais recentes de J. J. Abrams. Talvez possamos dizer que os grandes trunfos de Lost não residam em sua ficção, mas sim em seu estilo narrativo e suas técnicas, mérito dos roteiros e da produção. Dessa forma, listamos abaixo quatro dessas características que fizeram de Lost a série de sucesso que esta foi, e analisaremos se estas características ainda caberiam nos dias de hoje, mais de uma década depois. É possível listar várias outras inovações de Lost, e isso pode variar de fã para fã, portanto, essa lista não se esgota aqui, assim como a genialidade de Lost que permanece até hoje.
Flashbacks e flashforwards: estes recursos colocam na série a relação de causalidade entre situações passadas dos personagens e suas características atuais. Além disso, nos explicam como a ilha havia sido e representado oportunidades que alguns personagens esperaram durante toda a sua vida para ter. Por exemplo, Michael consegue apenas na ilha ter a oportunidade de estreitar seus laços com o filho Walt, apesar de ter passado por um longo e litigioso processo pela guarda do filho. A oportunidade que a ilha oferece a Locke é ainda mais profunda, coloca em contestação sua postura de inabalável fé, mesmo quando esta lhe proporciona o milagre de devolver sua mobilidade. Através dos flashbacks, a relação entre o espectador e o personagem poderia ser alterada em apenas algumas cenas por nos mostrar flahses da vida deste antes do acidente que podem justificar traços da sua atual personalidade e fazer com que condenemos ou perdoemos o personagem. Além disso, os flashbacks variavam sempre sobre o quão longínquo seria o passado apresentado, chegando até mesmo a mostrar a infância de alguns personagens. Tudo isso se encaixando muito bem na trama atual (na ilha) pela qual o personagem estava vivendo.
O primeiro flashforward (um flashback, só que revelando o futuro) foi apresentado sem prévia explicação, causando um grande choque nos fãs por mostrar que o diálogo de Jack e Kate estava acontecendo depois de eles terem deixado a ilha. “We have to go back”, a última frase da temporada, cria um gigante clifhanger para a próxima temporada, revelando que o grande objetivo dos personagens não era apenas deixar a ilha. Os flashforwards apresentavam quais eram os vínculos dos personagens com a ilha mesmo depois de terem a deixado, cada um tendo seu vínculo, o que foi explorado mais tarde por Jack para convencer todos a voltarem. A troca de flashbacks por fashforwards foi uma grande guinada na série, quebrando nossas expectativas de que a história seria finalizada no momento em que todos saíssem da ilha.
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Os recursos de flashback e flashforward não garantem por si só sucesso na narrativa de histórias. Dessa forma, podemos dizer que serviram apenas como ferramentas, recursos, nas mãos dos roteiristas. Atualmente, eles já são muito mais populares que na época, e seu uso regular pode rapidamente fazer lembrar de Lost, que talvez seja a série responsável por popularizá-los. Mas, como já dito, nem o uso em excesso, nem o uso cauteloso podem garantir o sucesso da trama. Lost fez dos flashbacks seu modo particular de nos apresentar seus personagens e fez isso com êxito, portanto, se fosse na atualidade e contando com os mesmos elaborados roteiros, a série não ficaria pra trás de nenhuma produção moderna.
Seis degraus de separação: a popular teoria dos seis degraus de separação diz que qualquer pessoa do mundo pode ser conectada com qualquer outra apenas por seis graus de separação. É curioso pensar que apenas seis pessoas nos separam de famosos como o Papa, Barack Obama ou Elon Musk. Mas é possível. Essa teoria é amplamente explorada em Lost através dos cruzamentos das histórias dos personagens. Quase todos eles desconheciam que seus colegas de acidente já haviam atravessado sua vida antes, apesar de que alguns desses cruzamentos realmente mudariam suas vidas para sempre. O maior exemplo disso está nas histórias de Locke e Sawyer. O homem que Sawyer caçou durante toda a sua vida (no caso o Sawyer original, de quem ele empresta o nome) era por fim o pai de Locke, que havia lhe roubado um rim e dado um triste destino à vida do filho. Essas relações muitas vezes eram sutis, algumas apenas perceptíveis aos olhos dos fãs mais atentos, por se tratarem de easter eggs, outras eram explícitas ou até fundamentais para o desenrolar da trama, como fora o exemplo citado. No final da série, algo já esperado pelos fãs aconteceu, Jacob, o guardião da ilha, havia “recrutado” e selecionado alguns dos passageiros da Oceanic 815, e anotado o nome de todos em um farol, revelando que já tinha planos para todos e que alguns deles eram fundamentais para seus propósitos. Desta forma, os seis degraus de separação apareceram na série às vezes como algum capricho do destino e às vezes como algo planejado, mas sempre nos causando a mesma reação.
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Mais uma vez o mérito fica para os roteiristas, pois apresentar que os personagens já se cruzaram numa rua qualquer num dia aleatório pode não significar absolutamente nada nem ter nenhum impacto emocional sobre a audiência. Em Lost, era exatamente o oposto que acontecia, uma vez que esses encontros respondiam questões importantes e que tinham profundo impacto na vida dos personagens, demonstrando inclusive o contraste entre passado e presente, um passado onde uma relação entre estes estranhos seria impossível e um presente onde ela faz todo sentido.
Clifhangers toda hora: a maioria dos episódios de Lost tem a estrutura de um filme; como cada um é focado na narrativa de um dos personagens, temos quase metade do tempo do episódio dirigido a desenvolver alguma trama em específico dentro da vida deste personagem, sendo que temos a apresentação do plot principal, seu claro desenvolvimento e o fechamento com algum clifhanger. Isso acentua a enorme nuance que temos em cada episódio da série; cada um é uma montanha russa de emoções que com certeza acaba no alto.
Quando algum episódio é diferente desse padrão e apresenta um final fechado, este fica destoante do restante dos episódios (não necessariamente isso faz dele ruim). Dessa forma, quando assistimos a Lost, nunca queremos parar, cada episódio nos amarra mais na trama e nos mistérios apresentados. Vemos muitas séries modernas tentando copiar este recurso, e uma das características mais diferentes das séries modernas é a redução do número de episódios (Lost chegava a ter até 24 episódios em algumas temporadas). O que isso muda na experiência dos fãs é receber uma experiência mais compacta, com possibilidade de maratonar, num dia apenas, toda a experiência da série.
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Não é necessário dizer que os maiores clifhangers de Lost estavam nos últimos e nos primeiros episódios de cada temporada, como quando Juliet consegue explodir a bomba no bolsão de magnetismo onde, no futuro, seria construída a estação Dharma, no intuito de evitar a queda do avião. A temporada termina sem nem mostrar ao mesmo se a bomba explodiu e se o plano deu certo, fazendo com que queiramos arrancar os cabelos da cabeça. É através desse recurso que nossa atenção foi refém da série, pois os clifhangers eram colocados com precisão em momentos perfeitos.
Mudanças de perspectivas: De um lado, um grupo de sobreviventes numa ilha tenta arrombar uma porta de ferro misteriosa cravada no chão e que às vezes emitia luz. Do outro lado, um homem vive sua vida pacífica, digitando um código num computador para salvar o mundo. Tenho certeza que sua cabeça também explodiu na hora dessa revelação, com a câmera saindo lentamente de dentro da escotilha e subindo pelo buraco no chão até focar nos rostos espantados de Jack e Locke.
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Muitos dos mistérios de Lost tinham explicações completamentes inesperadas, o que por si só já é um grande mérito, mas o mais interessante fica na forma como esses mistérios eram explicados; você assistia o desenvolvimento de longas cenas que pareciam sem propósito ou aleatórias e no final, com apenas uma palavra, os roteiristas eram capazes de amarrar as pontas e dar sentido a tudo aquilo, causando a explosão de nossas cabeças. Outro exemplo é a revelação da vida e da comunidade dOs Outros dentro da ilha antes do acidente: um clube do livro, liderado por uma mulher pacífica que adora cozinhar cookies; tudo parece sem sentido de estar ali até que a revelação surge: aquele era exatamente o local onde o vôo Oceanic 815 iria cair.
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Além das revelações visuais, muitas vezes isso acontecia através da revelação do nome de algum personagem que até ali era desconhecido, fazendo com que as peças se encaixassem. Isso revela um roteiro bem construído, que apenas pelas mudanças de perspectivas retém os mistérios até o momento perfeito para explicá-los. Também ajudou a expandir o universo da série sempre que algum novo personagem entrava, pois nos colocava e nos fazia sentir desorientados dentro de uma realidade que até então era desconhecida, para depois explicar qual era sua relação com tudo aquilo que já conhecíamos.
Talvez a maioria das características listadas pareça muito familiar nos dias de hoje, justamente porque bebem da fonte de Lost; uma série de ficção e mistério, mas que tinha grande mérito em construir boas histórias individuais e grupais, desenvolvendo muito bem todos os personagens e fazendo com que (quase) todas as peças do quebra cabeça se unissem no fim. Apesar disso, a soma ainda é maior que as partes, e essas técnicas juntas, trabalhadas por uma ótima equipe de produção e roteiro, fizeram de Lost a série imortal que é, ainda por conhecer sua sucessora no gênero.
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