WandaVision/Divulgação
À luz da teoria psicanalítica, temos o entendimento de que todos nós somos portadores de um aparelho psíquico abstrato e subjetivo, que rege os processos dinâmicos da nossa mente. Através da dinâmica desse aparelho, podemos compreender, por exemplo, a influência que tem sobre nós o inconsciente, as fantasias, a moral, etc. Este aparelho foi primeiramente dividido em três partes: o Id, que é a parte totalmente inconsciente, portadora das fantasias e dos desejos pulsinoais; o Super Eu, que é a parte responsável por representar a moral e as restrições que o mundo nos impõe e finalmente o Eu, que é a parte consciente, que está em contato direto com o mundo externo e se forma através de nossos primeiros contatos com a realidade e do reconhecimento de nossas limitações.
Dada essa breve explicação, é necessário para nossa análise saber que a porção do aparelho designada como Eu serve a três mestres tirânicos, dois deles são as outras porções do aparelho, ou seja o Id, o Super Eu e o terceiro é a própria realidade externa. O Eu, portanto, serve como um mediador, um juiz entre nossas vontades e necessidades e a própria realidade externa, na qual somos animais sociais e não podemos simplesmente saciar qualquer vontade à custa de outros ou à custa de contratos sociais sem qualquer consequência. Por outro lado, não é também necessário que soframos retaliações morais o tempo todo, e uma ética que não é extremamente rígida e sim bem equilibrada faz bem para uma consciência saudável.
Entretanto, existem algumas estruturas psíquicas que apresentam certo desequilíbrio de poder nas dinâmicas acima apresentadas e podem (ou não) fazer com que se apresente um quadro patológico. Aqui vale ressaltar o papel da mídia em acabar associando quadros de psicose a indivíduos psicopatas ou assassinos; não é a mesma coisa! É completamente possível um indivíduo com uma estrutura psíquica psicótica levar uma vida saudável em sociedade. O que determina que alguém possa ser violento ou um psicopata são outros fatores ambientais e biológicos que podem ou não agir em conjunto com essa estrutura psicótica.
O mecanismo de defesa típico da psicose é a negação de uma porção da realidade que fora insuportável ou ameaçadora. Ou seja, é típico que na psicose, o Eu se afaste da realidade insuportável de se vivenciar e, para reparar essa perda, estabeleça uma nova relação com a realidade à custa do Id (aquela parte responsável pelos desejos). Na psicose, se demonstra então uma vitória sobre a realidade e uma substituição da mesma, através da criação de uma nova realidade menos danosa e mais satisfatória, mais prazerosa. Dessa forma, Ego e Id se unem contra a “realidade real” ou realidade compartilhada, e dessa rebelião surge uma nova realidade construída com os fundamentos das fantasias habitantes do Id. Essa nova realidade é construída com os recursos psíquicos já existentes, como memórias, afetos e juízos. Essas obras primas da nova realidade nunca acabam, pois são constantemente renovadas e enriquecidas através da aquisição de novas percepções. Aqui ressalto novamente que uma atitude parecida pode ser encontrada na vida de qualquer indivíduo saudável, mas em menor grau. Entretanto, ao invés de negar a realidade e substituí-la, é esperado que este indivíduo agisse sobre a realidade externa, tentando fazer com que seja possível viver dentro dela.
Vários dos processos psíquicos acima apresentados estão presentes na história de vida de Wanda Maximoff, apresentados na série WandaVision ou em filmes anteriores do MCU. No episódio 8 da série, (se ainda não assistiu, cuidado com os spoilers)Wanda é conduzida por Agatha Harkness numa viagem à vários momentos de seu passado, alguns deles trágicos, como a morte de seus pais num atentado à bomba. Não bastasse a perda de seus genitores, sabemos das perdas mais recentes de seu irmão Pietro e da perda ainda mais recente de seu esposo Visão (sendo que a própria Wanda foi responsável pela sua morte ao quebrar a Joia da Mente que lhe dava vida). Tais fatores já são o suficiente para entendermos que a realidade não fora benevolente com a heroína e podemos, dessa forma, levantar a hipótese que a estrutura psíquica de Wanda não deu conta de lidar com tanta dor e tristeza e se utilizou do mecanismo da negação da realidade, típico da psicose.
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Num indivíduo real, todo esse processo opera de maneira inconsciente, ele não tem poder de escolha de moldar uma nova realidade de acordo com seu prazer e surgem então alucinações e delírios que remetem, através de associações inconscientes, aos seus recursos psíquicos adquiridos em sua história de vida. Algo muito semelhante foi sugerido também no episódio 8 da série, pois somos apresentados a uma Wanda infantil que assistia ao seriado The Dick Van Dyke Show juntamente a sua família, talvez um dos momentos mais felizes de sua vida, representando uma memória de grande carga afetiva. As cenas do seriado clássico são reproduzidas com precisão por Wanda dentro do Hex, no primeiro episódio da série da Disney. Fica subentendido que todas as referências a outros seriados que já notamos nos episódios passados, são realmente referências a outros momentos afetivos da vida de Wanda e que ela está, portanto, lançando mão dessas memórias afetivas para a construção de sua nova realidade.
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Os mecanismos de defesa psíquicos estão sempre atuando em nossa mente, sempre vigilantes, uma vez que os estímulos incessantemente chegam a nós desde o mundo externo. Dessa forma, o mecanismo típico da psicose, a negação, continua a colocar sua censura sobre qualquer traço da realidade que tente avançar sobre a construção da nova realidade, fazendo com que o indivíduo não se dê conta desta tentativa de avanço. No seriado, esse processo se demonstra quando Wanda, conscientemente, expulsa para fora do Hex qualquer invasor que a tente “acordar” daquele bom sonho. Através dessas cenas, encontramos uma dificuldade de entender até que ponto Wanda está inconsciente sobre tudo aquilo que se passa a seu redor. Será que a protagonista apenas se dá conta da realidade construída quando os atos saem do roteiro e ela precisa organizar a bagunça? E no resto, será que ela vive consciente de que tudo aquilo é uma encenação e ela é o mágico por detrás da cortina?
É notável também como Wanda não apenas “trás de volta à vida” Visão, mas como cria também dois filhos para o casal. Temos a sugestão de que a bruxa usa a Magia do Caos para criar essas pessoas que não existem (no caso dos filhos) ou que já partiram (no caso do esposo, Visão). Dessa forma, se exemplifica como na rebelião contra a realidade opressora, o Eu lança mão do Id, ou seja, fantasias, desejos e vontades, para construir o cenário da realidade substituta. Todo aquele cenário, todas as pessoas que ganham vida através da Magia do Caos, são construídos com recursos psíquicos já existentes nessa mente que se cingiu da realidade e se voltou para dentro de si mesma. E tudo aquilo que ousar entrar na nova realidade (Hex) haverá de se adequar ao primado das fantasias de sua portadora, Wanda, como exemplificado na cena onde a feiticeira expande o Hex, que acaba engolindo alguns objetos que estavam próximos e ganham uma nova roupagem dentro do campo, aparecendo como cenários de um circo.
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É impossível para nós fazermos uma análise precisa da mente de personagens fictícios, pois sempre nos faltarão informações relevantes e ele não poderá responder às perguntas pertinentes a essa análise. Aqui, apenas sugere-se uma análise psicológica de uma mente fictícia e conturbada por tantos traumas passados. Certamente seria ótimo que Wanda e qualquer outra pessoa que tenha vivenciado traumas tão profundos procurem por ajuda psicológica. Mas como se trata de ficção, continuaremos ansiosos por um fim o menos trágico possível dessa jornada de nossa heroína. Fica também a reflexão sobre o quanto da realidade podemos suportar sem poderes mágicos, embora a proposta pareça atraente.